RAZÃO, CIÊNCIA E RELIGIÃO
“A
religião primitiva da humanidade
surgiu principalmente de um medo
dos acontecimentos
futuros.” (David Hume)
O
filósofo David Hume, em História Natural da Religião, trata das origens e das
causas que produzem o fenômeno da religião. Hume encara todas as crenças
religiosas como mero produto da natureza humana, ou seja, um resultado das
paixões humanas mais primitivas e básicas, dos instintos naturais como medo e
esperança. O filósofo não era ateu, e sim um deísta. Mas seus constantes
ataques às crenças religiosas despertaram a ira de muitos crentes, e em 1761
todas as suas obras acabaram no Index da Igreja Católica. Mergulhando nos seus
escritos, não é difícil entender o motivo: seus argumentos são poderosas armas
contra a ignorância e a superstição. Sua mentalidade estava bem à frente do seu
tempo, que ainda exalava extrema intolerância religiosa.
Para
Hume, uma contemplação racional da natureza, com sua uniformidade, levaria à
concepção de um criador único. Entretanto, ele reconhecia que “as primeiras
idéias da religião não nasceram de uma contemplação das obras da natureza, mas
de uma preocupação em relação aos acontecimentos da vida, e da incessante
esperança e medo que influenciam o espírito humano”. Os homens seriam guiados
por algumas paixões até às crenças religiosas, mas não pela curiosidade
especulativa ou o puro amor à verdade, motivos refinados demais, segundo Hume,
para um entendimento tão grosseiro. Hume diz: “As únicas paixões que podemos
imaginar capazes de agir sobre tais homens incultos são as paixões ordinárias
da vida humana, a ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras,
o medo da morte, a sede de vingança, a fome e outras necessidades”. Agitados
por esperanças e medos, num cenário desordenado, os homens vêem “os primeiros
sinais obscuros da divindade”.
Não
escapou aos olhares atentos de Hume a característica humana de conceber todos
os seres segundo sua própria imagem. Além disso, há uma tendência em transferir
a todos os objetos as qualidades com as quais os homens estão familiarizados.
Como exemplo, basta pensar nas faces humanas vistas na lua, as formas nas
nuvens, ou a maldade e bondade que atribuímos a tudo que nos faz mal ou nos
agrada, ainda que simples fenômenos naturais. Logo, a ansiedade em relação ao
futuro desconhecido e a ignorância levam o homem à crença de que ele depende de
poderes invisíveis, dotados de sentimentos e de inteligência. Segundo Hume,
“quanto mais um homem vive uma existência governada pelo acaso, mais ele é
supersticioso, como se pode particularmente observar entre os jogadores e os
marinheiros”. O medo e as angústias que a incerteza gera são insuportáveis para
muitos. Hume conclui que “os homens ajoelham-se bem mais freqüentemente por
causa da melancolia do que por causa de paixões agradáveis”.
Uma
característica que anda de mãos dadas com o medo é a adulação. O deus criado
pelos homens por conta desse medo passa a ser visto como um protetor
particular, e seus devotos tentarão por todos os meios obter seus favores.
Transferindo as paixões humanas a este deus, os crentes imaginam que ele ama o
louvor e as lisonjas também, e não pouparão nenhum elogio ou exagero em suas
súplicas. “À medida que o temor e a miséria dos homens se fazem sentir mais”,
diz Hume, “estes inventam, todavia, novas formas de adulação”. Os deuses
criados são representados como seres semelhantes aos homens, sensíveis e
inteligentes, movidos por amor e ódio, suscetíveis às oferendas e às súplicas,
às pregações e aos sacrifícios. Para Hume, aqui está a origem da religião e,
conseqüentemente, da idolatria. Os semideuses ou seres intermediários, por
serem ainda mais familiares à natureza humana, convertem-se no principal objeto
de devoção. Se os gregos tinham seus heróis semideuses, os católicos criaram
seus santos.
As
disputas quase sempre violentas entre as diferentes religiões foram analisadas
por Hume também. Como “cada seita está convencida de que sua própria fé e seu
próprio culto são totalmente agradáveis à divindade, e como ninguém pode
conceber que o mesmo ser deva comprazer-se com ritos e preceitos diferentes e
opostos, as diversas seitas acabam naturalmente em animosidade e descarregam
umas contra as outras aquele zelo e rancor sagrados, que constituem as mais
furiosas e implacáveis de todas as paixões humanas”. Como exemplos, Hume cita
“o espírito estreito e implacável dos judeus”, os princípios ainda mais
sangrentos dos seguidores de Maomé, e não poupa os cristãos, que teriam
abraçado os princípios da tolerância por causa da “firme determinação dos
magistrados civis, que se opuseram aos esforços contínuos dos padres e dos
fanáticos”. Além disso, Hume considera que “os sacrifícios humanos dos
cartagineses, dos mexicanos e de muitas nações bárbaras raramente superaram a
Inquisição e as perseguições de Roma e de Madri”.
Apesar
de deísta, Hume tinha muito receio do monoteísmo quando somado às superstições.
Ele escreve: “A crença em um deus representado como infinitamente superior aos
homens, ainda que seja completamente justa, é suscetível, quando acompanhada de
terrores supersticiosos, de afundar o espírito humano na submissão e na
humilhação mais vil, e de representar as virtudes monásticas da mortificação,
da penitência, da humildade e do sofrimento passivo como as únicas qualidades
que são agradáveis a deus”. Os flagelos, jejuns e covardia se tornam os meios
para obter honras celestiais. Como um dos exemplos dessa inversão de valores, Hume
cita o caso do Cardeal Belarmino, canonizado em 1930, que deixava as pulgas e
outros insetos repugnantes grudarem nele, dizendo: “Ganharemos o céu como
recompensa por nossos sofrimentos, mas estas pobres criaturas não têm mais que
os prazeres da vida presente”. O sacrifício passa a ser visto como uma virtude
em si. Sofrer é o caminho do paraíso.
Ainda
atacando as crenças católicas, Hume afirma que “em todo o paganismo não há
nenhum dogma que se preste mais ao ridículo que o da presença real, pois é tão absurdo
que escapa a toda refutação”. Hume conta a piada de um comungante que recebeu,
por engano, uma moeda no lugar da hóstia sagrada, e após esperar um tempo para
ela se dissolver, tirou-a da boca e gritou ao sacerdote: “Espero que não tenhas
cometido um erro; espero que não me tenhas dado Deus Pai; é tão duro e tão
resistente que não há modo de o engolir”. Hume desabafa: “Essas são as
doutrinas de nossos irmãos católicos”. Para o filósofo, no futuro provavelmente
será “difícil convencer certas nações de que um homem, criatura de duas pernas,
possa ter abraçado alguma vez tais princípios”. Pelo visto, esse dia ainda não
chegou...
Diante
de crenças tão tolas, a natureza humana e o bom senso acabam prevalecendo, na
maioria dos casos. Hume diz: “Podemos observar que, apesar do caráter dogmático
e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é, em todas
as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida se
aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos comuns
da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as dúvidas que
os assaltam sobre estas questões: ostentam uma fé sem reservas e dissimulam
ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas afirmações
e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus esforços e
não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias regiões,
iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela
experiência”. Por esse motivo vemos carolas pregando a castidade e condenando o
uso de preservativos, enquanto na prática ignoram esses absurdos. Acertam as
contas depois. Afinal, somos todos pecadores mesmo!
A
moral, mesmo a mais elevada, era vista por Hume como independente das
religiões: “Ainda no caso das virtudes que são mais austeras e mais dependentes
da reflexão, como o espírito público, o dever filial, a temperança ou a
integridade, a obrigação moral, tal como a compreendemos, descarta toda a
pretensão a um mérito religioso; e a conduta virtuosa não é mais que aquilo que
devemos à sociedade ou a nós mesmos”. Para simplesmente pregar uma conduta
moral, a religião não é absolutamente necessária. Por isso todas elas acabam
criando vários dogmas absurdos. Para o crente, afinal, o que é puramente
religioso é mais virtuoso. Se agir com integridade for uma demanda moral comum
a todos, o religioso não pode se limitar a isso. Ele jejua ou se dá uns bons
açoites, ajoelha no milho, sobe escadas de joelho, usa o cilício, qualquer
coisa que, em sua opinião, tem uma relação direta com a assistência divina.
Hume explica: “Por meio desses extraordinários sinais de devoção obtém, pois, o
favor divino, e pode esperar, como recompensa, proteção e segurança neste mundo
– e felicidade eterna no outro”.
“Tudo
o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os
interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e
constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos
ensina a suportá-los”. Para Hume, “quando resplandece essa serenidade de
espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências”. Eis o antídoto
contra as superstições. A barbárie e a arbitrariedade são “as qualidades, ainda
que dissimuladas com outros nomes, que formam, como podemos observar
universalmente, o caráter dominante da divindade nas religiões populares”. As
religiões criam monstros, deuses cruéis que castigam, que punem, atormentando o
sono dos crentes. Hume diz: “Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade,
mais os homens se tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais
extravagantes são as provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais
necessário se faz que abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à
condução e direção espiritual dos sacerdotes”.
O
medo é uma arma muito eficaz no controle das pessoas. Se a religião oferece
conforto por um lado, cria grilhões por outro. “A crença na vida futura abre
perspectivas confortáveis que são arrebatadoras e agradáveis. Mas como esta
desaparece rapidamente quando surge o medo que a acompanha e que possui uma
influência mais firme e duradoura sobre o espírito humano!”
A
razão humana, ainda que um privilégio de nossa espécie, não é usada muitas
vezes contra as paixões mais básicas. Desta forma, as religiões prosperam.
Deixo os comentários finais com este grande filósofo: “Observemos a maioria das
nações e épocas. Examinemos os princípios religiosos que têm, de fato, vigorado
no mundo. Dificilmente nos persuadiremos de que eles são mais do que devaneios
dos homens.
Créditos a:
Rodrigo Constantino
Manoel Messias
Ciencias da Religião
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